17 dezembro 2009

O homem que me ensinou a morrer


Conheça a incrível história de Valentim de Moura, o operário que morreu passarinhando

Durante mais de uma semana, acompanhei seu Valentim na vivência de sua morte. Nestes tempos estranhos que vivemos, em que a morte é um tabu, o mais radical é morrer com serenidade, sem medo. Por absurdo que pareça, morrer com naturalidade tornou-se um ato revolucionário. Foi assim com seu Valentim: ele encerrou sua vida em paz. Para ele, não havia nada mais natural do que chegar ao fim de sua trajetória e morrer cercado por quem amava contando histórias da sua vida.

Nós, repórteres, sempre sofremos com as histórias que apuramos e não couberam no texto – ou, neste caso, no programa de TV. Trabalhamos limitados pelo número de páginas, pelo tempo do programa. A história de seu Valentim não pôde ser contada. O inusitado ali era a naturalidade da morte. E o fato de uma morte serena ser algo tão subversivo me fez pensar bastante.Como estes acontecimentos ficaram tatuados na minha alma, quis contar aqui para que mais gente pudesse ter a chance de aprender com seu Valentim. Não queria me beneficiar sozinha de uma experiência de vida tão larga.

Ele sabia que morreria de câncer. Era tratado na enfermaria de cuidados paliativos, um lugar onde cuidar é mais importante do que curar. Lá, doentes com escassas chances de cura são acompanhados por profissionais da saúde com uma convicção diferente da difundida pela prática médica tradicional. Eles acreditam que seu papel é amenizar os sintomas, escutar muito, cuidar das feridas invisíveis para que os pacientes possam viver intensamente, até o fim. A vida não é nem abreviada, nem prolongada por tratamentos dolorosos e invasivos. Cada paciente é visto como a pessoa singular que é, e sua história é tão determinante na hora de tomar as decisões quanto os aspectos médicos.

Durante o tratamento, seu Valentim piorava e passava alguns dias internado na enfermaria, até estar bem e voltar para casa. Quando novamente piorava, voltava para o hospital. Até o dia em que sentiu que, quando voltasse à enfermaria novamente, não mais retornaria para casa. Reuniu a mulher, dona Geralda, os seis filhos, e pediu que lhe comprassem um túmulo. Queria que fosse branco, mas os filhos acharam que sujaria muito. Concordaram então em pintar da cor do céu. Ele pediu também que plantassem muitas flores no jardim. Seu Valentim pertencia à natureza.

Quando o túmulo ficou pronto, ele anunciou que havia chegado a sua hora. “Minha casa agora vai ser esta nova que vocês fizeram para mim”, disse. “Quero ir para aquela enfermaria cheia de moças bonitas, onde me tratam muito bem.”

No caminho, exigiu uma parada no cemitério. Vistoriou seu túmulo, seu jardim, e disse: “Muito bonito”. Entrou no carro satisfeito e foi para o hospital. Lá, contou-me que era metalúrgico e, como o presidente Lula, também teve o dedo engolido por uma máquina. De dentro do lençol, puxou uma mão magra para mostrar-me a ausência que marcava sua vida de operário. Ao lado, o cunhado lembrava dos tempos em que seu Valentim tocava sanfona e havia se apaixonado por dona Geralda. Enquanto ele morria, ouvia histórias. Em todas, era ele o protagonista.

A cada dia seu Valentim ia nos deixando um pouco mais. Mas sem pressa. Nenhuma. “O tempo é o dele”, disse a chefe da enfermaria, Maria Goretti Maciel. “Não temos nenhuma necessidade de intervir. Ele está vivendo o fim da vida. E o médico não deve se intrometer nisso. Só precisamos caminhar ao lado dele, para ajudar no que for preciso. Este é um caminho que tem de ser vivido.” Logo depois, com aquele jeito manso de Goretti, ela suspirou: “Não parece a morte que a gente gostaria de ter?”

Parecia. Desrespeitamos tanto o tempo na nossa vida, não esperamos o tempo de nada, atropelamos o tempo de tudo, não temos nem sequer minutos para elaborar os tantos acontecimentos vividos. Que pelo menos esperemos o tempo da morte. Resolvi até sentar-me um pouco no corredor para gastar tempo refletindo sobre o tempo sem me preocupar em gravar coisa alguma.

Nos últimos dias seu Valentim não falava mais. Só olhava, para longe e para dentro, na mais absoluta serenidade. Parecia que às vezes ele mesmo se surpreendia de acordar e ainda estar neste mundo. Já tinha deixado a casa que construiu, despedido-se da família que criou com dona Geralda, falado de amor para a mulher com quem viveu 45 anos. Estava pronto para ir embora.

Numa manhã, partiu. “Passarinhando”, resumiu Goretti. Simplesmente parou de respirar, silenciou e se foi.

No dia seguinte foi enterrado em um cemitário chamado Saudade, acompanhado pela mulher, os filhos, os netos, os colegas de trabalho, os companheiros de sanfona, os amigos de uma vida inteira. Foi um enterro do jeito dele. Enquanto o cortejo evoluía pelo cemitério, eu escutei mais meia dúzia de histórias do seu Valentim. Quando todo mundo se calou por um instante, soubemos que dezenas, talvez centenas de passarinhos moravam nas árvores perto de seu túmulo.

Ao me despedir de dona Geralda, descobri porque aquele casamento tinha dado tão certo. Ela disse, depois de dar adeus ao homem com quem tinha dividido a maior porção da vida: “Ele está bem guardadinho ali no barraquinho dele”. Estava mesmo. E estava tudo certo.

Em um vídeo, que mostramos aqui, há uma pequena amostra do material gravado com seu Valentim. Dá para ter uma ideia deste homem e sua morte tão subversiva para os tempos atuais. Dizem que nome é destino. Às vezes, como agora, até acredito.

Se seu Valentim soube morrer sem drama, eu também quero me despedir dele sem choro. Só quero dizer: “Muito obrigada, seu Valentim, por me ensinar a morrer”.

ELIANE BRUM

Repórter especial de ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo) O mais fascinante da profissão de repórter, na minha opinião, é a possibilidade de bater na porta de tantas vidas e ter uma boa desculpa para entrar. Isso, às vezes, tem um preço alto. Mas, em outras, como na história que vou contar, é um presente. Fui convidada a participar do Profissão Repórter, da TV Globo, sobre a enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo.

Fonte Revista Época

Nota: Por mais terrível que a morte possa parecer, até neste momento, Deus ainda demonstra seu amor. A morte, apesar de ser uma consequência do pecado (Rm. 5:12), não é para ser considerada como um castigo, ela é chamada de Salário (Rm. 6:23), e afinal, salário não é aquilo que desejamos receber no final de cada mês? Não tenho informações da vida espiritual do seu Valentim, mas a sua história me fez lembrar destas palavras: "Preciosa é, à vista do Senhor, a morte dos seus santos." Salmo 116:15.

Quando Deus determinou o tempo de vida dos homens nesta terra após o dilúvio, que seriam de 120 anos (Gn. 6:3), sempre imaginei a morte dos filhos de Deus assim:

Quando um filho de Deus completasse 120 anos, toda a família seria convidada, amigos, vizinhos, irmãos da igreja, para aquela data ímpar na vida daquele que havia completa os seus dias; aquele filho dormiria para só acordar no dia da vinda do Senhor. Entre cânticos de louvor e gratidão, o filho de Deus daria testemunho para todas as pessoas que o sono da morte é apenas um descanso desta vida de lubatas e sofrimentos, e que há esperança na morte do justo. Pv. 14:32.

Resta Uma Esperança